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Autônomos invisíveis

Existe uma legião de trabalhadores informais no Brasil que estão desassistidos pelo Estado. O custo pode ser alto.

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Por Lívyan Holanda, Karla Mota, Raniele Alves e Vivian Myllena

No Brasil, há uma estimativa de que cerca de 39.307 milhões de pessoas trabalhem em serviços informais, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), apurada pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE), em 2022. No entanto, apesar da estimativa, não há políticas públicas eficazes que atribuam ao profissional informal garantia às leis trabalhistas.

 

Cada vez mais presente no cenário econômico brasileiro, as causas para a informalidade são resultado do processo sócio histórico do país, com números alarmantes de vulnerabilidade social, relevando o retrato da precarização do mercado de trabalho formal que levam a população a buscar uma saída por meio do serviço informal, conforme indica o relatório Retratos do Trabalho Informal: desafios e caminhos de solução, lançado pelo Instituto Veredas, em 2022.

 

Sem aprofundamento de dados acerca desse serviço e sem o amparo necessário das leis trabalhistas devido a sua complexidade, o relatório revela que, diariamente, diversos profissionais informais se expõem “a riscos relacionados ao exercício da atividade laboral, à ausência de proteção em períodos de inatividade e à falta de segurança financeira e garantia de direitos”, em busca de meios de sobrevivência devido a redução de oportunidade empregatícias.

 

O trabalho informal é caracterizado a partir de diversos subgrupos de profissões. O relatório produzido pelo Instituto Veredas, já indicado acima, categoriza a atividade em quatro eixos: serviço de subsistência, informais com potencial produtivo, informais por opção e os que se enquadram no trabalho formal (intermitentes), mas de forma atípica. Desses, segundo os dados presentes no relatório, o serviço de subsistência é o que apresenta maior instabilidade por ser uma ocupação de sobrevivência.

 

Dentro desta categoria, há um subgrupo de profissionais que se encontram em situação de invisibilidade tanto diante da sociedade, quanto da atenção política: os trabalhadores do comércio ambulante. Sem exigência de qualificação profissional e devido aos riscos a que os trabalhadores estão expostos, estes se enquadram como serviço de subsistência pela instabilidade e fragilidade presentes no trabalho exercido pela categoria.

 

Segundo os dados do relatório “Trabalhadores Ambulantes, uni-vos”, lançado pelo Insight Inteligência, e do Retratos do Trabalho Informal: desafios e caminhos de solução, o número de ambulantes nas ruas do país se intensificou pouco antes da pandemia, entre 2017 a 2019, principalmente com a chamada “gastronomia de rua”. Apesar da carência de dados concretos, a percepção do  aumento de ambulantes é realizada através do senso comum. Dentro do número de serviço informal, parte desses trabalhadores apresentam uma maior vulnerabilidade econômica e social no cenário atual, devido à falta de políticas públicas direcionadas à categoria.

 

Os ambulantes são trabalhadores informais que auxiliam o quadro econômico do país em situações de crises financeiras, trabalham em locais públicos e como não possuem um local fixo de trabalho, podem ser encontrados em ruas e calçadas, espalhados pela cidade sempre com algo a ser vendido. Foi dessa maneira que encontramos os personagens desta reportagem em diferentes ambientes e histórias de vida, mas unidos pela fadiga do seu trabalho.

 

Após fazer uma pesquisa nas leis trabalhistas brasileiras e escutar depoimentos de um advogado e de um assistente social, constatamos que não há políticas públicas brasileiras direcionadas aos trabalhadores ambulantes, negligenciando o bem-estar e a sobrevivência, mesmo que façam parte da economia brasileira.

 

DIA

 

Acordar, trabalhar, chegar em casa, dormir e reiniciar a maratona de trabalho no dia seguinte. Essa  rotina de boa parte dos trabalhadores no mundo é também a dos vendedores ambulantes, mas estes, dentro do serviço informal, se arriscam dia a dia às incertezas do trabalho sem o amparo necessário dos direitos trabalhistas.

 

O relógio agora marca 2h da madrugada. É nesse horário que o ambulante Daniel Lucas acorda para dar início a sua jornada de trabalho. Primeiro, vai até a Central de Abastecimento de Sergipe (Ceasa) comprar seu material de trabalho, frutas e verduras. Depois de carregar caixas e mais caixas recheadas destes produtos, a ficha cai, o dia só começou.

 

“Nós começamos às duas da manhã. Nesse horário a gente vai pro Ceasa pegar mercadoria do caminhão para retirar, fazer nota e pedido. De lá, nós botamos as coisas nas caixas e pegamos o frete. Do frete, nós vem pra cá pra arrumar o carrinho para revender, ganhar o pão de cada dia, né?”, relata Daniel.

 

Ao chegar no centro da cidade de Aracaju, capital sergipana, Daniel se estabelece em seu ponto na Rua Santa Rosa e se organiza para começar outro longo dia de trabalho. Começa a vender e vê o tempo passando, assim como  vê também as milhares de pessoas que passam por ele diariamente. No final do expediente, o que lhe resta é o corpo cansado, a renda e a sensação inquietante de que amanhã tudo se repetirá. Hoje, com 26 anos, Daniel Lucas trabalha desde muito pequeno. “Como camelô, eu tenho 18 anos de trabalho. Comecei com oito anos aqui no centro, vinha com meu pai’, conta. 

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Daniel está no ponto da Rua Santa Rosa há cinco anos. Foto: Raniele Alves

A expressão cansada em seu rosto e os gestos tímidos estão por cima da pele marcada pelo sol e pelo trabalho, além do corpo acometido por pequenos acidentes causados pela realização de suas atividades enquanto trabalha, o que ele diz que são comuns. “Tem muita pancada assim. Às vezes, quando as caixas caem por cima, pega nas canela e os bicos delas cortam. Teve um dia que eu estava levando umas cinco caixas num carrinho, de repente o pneu do carrinho saiu e eu bati a “bolacha” do joelho. Fiquei três meses sem trabalhar. Três meses. Durante esse tempo quem me socorreu foi a guerreira da minha mulher”, explicou Daniel.

 

Mais adiante, na lateral do Terminal Rodoviário Governador Luiz Garcia, conhecido popularmente como Rodoviária Velha, está Maria de Jesus, 56 anos. Sentada em frente a sua barraca, onde vende meias e “xuxinhas” para cabelo, dona Maria costura laços amarelos. 

Mesmo dizendo estar cansada e sem vontade para falar, ela conversou bastante com nossa equipe, principalmente, sobre o cansaço que sentia e sobre estar aguardando ansiosamente pela sua aposentadoria daqui a quatro anos. “Eu chego nove horas aqui e volto para casa às quatro e meia. Antes eu trabalhava 17 horas por dia. Saía às quatro e meia da manhã para ir pra feira livre. Quando a feira terminava duas horas da tarde, eu ia para a Sulanca, que é outra feira livre e só saia de lá quando não tinha mais nenhum cliente. Tinha dias que só saia meia-noite”, comentou Maria.

Enquanto Dona Maria relembra sua rotina cansativa de trabalho, ela compartilha que tem um sonho: aposentar-se e descansar as mãos que, com grande habilidade, fazem laços durante toda a conversa que tivemos com ela.


Com bom humor, ela nos conta sobre sua vida de ambulante e de como isso vem afetando sua vida social e sua saúde. “Mulher, ultimamente minha filha disse que eu estou antissocial porque eu nem saio, nem vou pra lugar nenhum, eu já passo o dia todinho aqui na rua, aí quando chego em casa gosto de ficar assistindo televisão, cochilar no sofá, ficar com meu neto brincando. Eu só gosto de sair para ir à praia, né? Pra comer caranguejo”, explicou Maria.

Com um semblante cansado, Dona Maria se despede da gente dizendo que o que ela tem agora é fruto do trabalho como ambulante. “Com o dinheiro daqui dá para comer. Não passo fome não, graças a Deus. Com esse dinheiro, eu consegui comprar minha casinha. Mas não sei quanto eu tiro aqui porque eu não anoto mais nada. Eu estou dizendo que estou cansada, né? Então, eu não anoto mais nada”, desabafou Maria.

Em outro ponto, ainda no Centro, conhecemos Clemilda Gomes. Ela estava vendendo sua água e com muita simpatia, contou que trabalha no centro há 14 anos, ela finalizou a frase com “apenas 14 anos”, como se todo esse tempo debaixo do sol quente do centro de Aracaju fosse quase nada comparado ao tanto que ela já exerceu a profissão na vida.

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Além de água, Clemilda também vende óculos solares. Foto: Karla Mota

Com apenas 7 anos, ela começou a trabalhar na roça e desde então não parou. Hoje com “50 e poucos” anos, Dona Clemilda fala que o seu corpo está adoecido e cansado excepcionalmente por conta de todo o trabalho, mas que se mantém persistente para conseguir pagar a contribuição com a Previdência Social (seguro que garante uma aposentadoria ao contribuinte quando ele para de trabalhar). 

 

“Eu pago todo mês, pago certinho aquela quantidade, caso eu adoeça e não consiga trabalhar, posso dar entrada no INSS. Se eles verem que o meu problema é de saúde, é caso mesmo de encostar, eles encostam, aí três meses. Daí eu vou lá fazer a perícia e fico mais de três meses e assim vai. Agora quem não paga nada no INSS e fica doente, aí vai precisar de alguém pra ajudar”, explicou Clemilda.

 

Dona Clemilda é uma senhora doce e de grandes sorrisos que não deixou todo o tempo de trabalho abater a sua vontade de ter uma vida mais tranquila. Ela como os outros entrevistados compartilham o cansaço, as frustrações, as incertezas do trabalho, mas também a superação e a força para continuar… ao menos até se aposentar.

REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO

 

Acidentes de trabalho são coisas com probabilidade de ocorrer quando o trabalho exige esforço físico diário e não há segurança no trabalho. No entanto, o risco de se machucar anda lado a lado ao risco de não conseguir mais ganhar o seu sustento devido a algum acidente. Essa é a realidade dos trabalhadores que não possuem CLT.

 

Empregos com carteira assinada cobrem o tempo de recuperação do trabalhador acidentado. Mas, para os ambulantes que trabalham na informalidade e não contribuem com a previdência como autônomos, existe a incerteza de não conseguir auxílio enquanto  se recuperam. 

 

O exercício ambulante no Brasil foi regulamentado através do Decreto-Lei Nº 2.041, em 27 de fevereiro de 1940. Assinada pelo ex-presidente Getúlio Vargas em seu segundo mandato (1930-1945), o documento legaliza o comércio de produtos em locais públicos, mas sem ampará-los dignamente. Ainda em vigor, esta regulamentação se mostra ultrapassada e incompleta para dar o suporte devido para os profissionais ambulantes, fazendo-se urgente a necessidade de uma nova lei que englobe esses assuntos.

 

Para incluir os vendedores ambulantes nas leis trabalhistas e estes terem direito à aposentadoria e ao auxílio-doença em caso de acidentes, uma reformulação foi realizada na Lei 2.041/1940. Em 6 de novembro de 1978, o ex-presidente Ernesto Geisel assinou a Lei 6.586, que garantia aos ambulantes contribuírem com o INSS e, assim, conseguirem o direito à aposentadoria.

 

Foi através desta contribuição ao INSS que Daniel, ao se acidentar, teve direito ao benefício previdenciário enquanto se recuperava. Mas, há ambulantes que não conhecem a lei ou optam por não pagar o imposto, e em caso de acidente não é assegurado, como foi o caso de um trabalhador ambulante que comercializa milho assado no Centro de Aracaju (ele optou pela privacidade de sua identidade).

 

“Nesses dezoito anos trabalhando, uma vez eu caí e criei uma hérnia. Isso tem oito anos já. Tive que fazer uma cirurgia e parar de trabalhar por um tempo. Naquela época quem me ajudou foi minha família”, conta sobre as dificuldades que passou quando se machucou. Mas, como ele não contribui para o INSS, não atende aos requisitos para ser assegurado pelo auxílio-doença, benefício por incapacidade temporária para quem precisa se afastar do trabalho por motivo de doença ou acidente. 

 

De acordo com o advogado previdenciário Miguel Ângelo, o ambulante é um trabalhador autônomo. Caso ele não pague a contribuição social, ele não tem direito ao auxílio-doença nem à aposentadoria. O advogado ainda relata que o Estado falha ao garantir os benefícios apenas para contribuintes do INSS e explica como essa relação funciona.

 

“O Estado não protege de forma gratuita, graciosa, ele ajuda mediante ao pagamento de alguma coisa para ele. Tem que se filiar ao sistema previdenciário, e não é um pagamento provisório ou facultativo, é obrigatório. No momento em que você vende e tem um lucro, você tem que pagar os impostos e um desses impostos é a contribuição social”, explicou o advogado.

 

Segundo Miguel Ângelo, para que os ambulantes tenham acesso aos benefícios, auxílios e aposentadoria, é preciso que esse trabalhador contribua como trabalhador autônomo com uma porcentagem do valor do salário mínimo mensalmente. Caso contrário, não terá os direitos previstos na lei. Para realizar o pagamento é necessário emitir ou preencher a Guia de Previdência Social (GPS) no site da receita federal

 

“Com a reforma trabalhista que teve em 2017, as contribuições sociais, têm um valor mínimo de 20% do salário mínimo. Antigamente se tinha umas faixas mais baixas e até hoje as pessoas acabam contribuindo com valores mais baixos, mas não protegem elas no momento de aposentadoria. Nessas contribuições sociais, o ambulante tem que recolher ele mesmo a contribuição, pois ela não é automática. Ele tem que ir atrás e pagar", esclareceu o advogado.

 

Miguel ainda diz que, ao completar a idade mínima para a aposentadoria, o ambulante ainda precisa passar pela assistência social, pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), e, somente após isso, conseguirá se aposentar e ter o merecido descanso.

 

Ainda que alguns benefícios para a categoria estejam previstos em lei, o retorno não é imediato, uma vez que a utilização da seguridade apenas acontece em caso de aposentadoria e nos auxílios-doença, quando necessário. Logo, esses profissionais não percebem o retorno desse pagamento, além de sua taxa social da contribuição ser alta, dificultando a assistência desses profissionais. 

 

Segundo o assistente social, Thiago Góis, o ambulante é um profissional que está à margem da sociedade. Para ele, a falta de uma assistência mais específica a esses profissionais prejudica seu dia a dia de trabalho. 

 

“Podemos dizer que eles são bem desassistidos, com vários direitos violados, porque não há uma legislação ou uma política mais específica direcionada aos ambulantes que contribua para uma prevenção e uma assistência aos riscos a que esses profissionais estão expostos. Então, tudo isso complica as expressões da questão social que já é forte nessa categoria”, pontuou Thiago.

 

Isso fica claro quando analisamos que o decreto de 1940, que regula a profissão, não sofreu muitas reformulações, e que, em pleno 2023, esses profissionais ainda vivam em uma situação de precarização de seu trabalho. Para Thiago, a situação da categoria é alarmante e precisa urgentemente de garantias e direitos eficazes, principalmente previdenciários.

 

“É importante observar que o ambulante está ali porque está com saúde para trabalhar, e, por mais que seu trabalho seja árduo e difícil, é dessa forma que ele consegue, minimamente, os bens necessários para sobreviver e manter seu núcleo familiar. A grande questão é quando o ambulante adoece. Talvez ele não contribua, logo não será assegurado durante seu período de recuperação, e ficará desamparado nessa situação” explica Thiago. 

 

Segundo o assistente social, foi durante a pandemia que a situação de precarização do trabalho informal se agravou. Num cenário de crise econômica no país, a vulnerabilidade desses trabalhadores ficou ainda mais em evidência. “A pandemia trouxe um impacto que até hoje não foi possível ser resolvido. O auxílio emergencial também não foi capaz de solucionar seus efeitos. A luz no fim do túnel para essa categoria seria que o estado garantisse mais direitos a esses trabalhadores e que eles (trabalhadores) entendessem a importância dessa garantia, dessa seguridade, para sua saúde e para seu trabalho de forma de geral”, explicou Thiago.

 

O assistente social chama atenção também para a importância da categoria diante do atual cenário econômico brasileiro. Thiago explica que o comércio ambulante funciona como base de um sistema que envolve um conjunto de trabalhadores.

 

“Eles são trabalhadores que têm uma importância muito grande dentro da economia do país, mesmo estando à margem do sistema capitalista. Por exemplo, existe o ambulante que vende lanche, o trabalho dele está possibilitando que outros trabalhadores tenham  acesso, nesse caso, à alimentação com um custo mais barato. A ausência desse ambulante fará com que aquele trabalhador não tenha acesso à uma alimentação pelo mesmo custo benefício que ele tinha anteriormente. Isso afeta todo o sistema e interfere na vida de outras pessoas”, destaca.

 

Para minimizar os danos e melhorar a qualidade de vida da categoria, Thiago aponta algumas soluções desse trabalho multifacetado. “É complexo e necessita de ações complexas. Inicialmente existe a necessidade de organização da categoria. É preciso que esses trabalhadores tomem consciência de classe e passem a atuar em seu favor. O Estado pode contribuir com esse processo de organização propagando informações nos meios de comunicação de massa como também fazendo um mapeamento desse grupo, a partir das secretarias municipais de trabalho”, instrui Thiago.

 

NOITE

 

O dia passa e a noite chega. No dia 17 de março, especialmente, foi o aniversário da cidade de Aracaju e a praça dos mercados Hilton Lopes encheu de pessoas que foram ali para curtir as festividades da data comemorativa, no evento promovido pela prefeitura da cidade. A equipe acompanhou a realização do evento e conversou com os trabalhadores ambulantes que estavam lá. Para autorizar a comercialização de produtos durante o evento, a Empresa Municipal de Serviços Urbanos (Emsurb) realizou um sorteio com trabalhadores da cidade.

 

Durante o evento, nossa equipe de reportagem teve acesso aos bastidores das atrações, e ao circular pelo local, observamos uma grande quantidade de vendedores ambulantes que se posicionaram pelo espaço da festa com carrinhos de comidas e caixas de isopor com bebidas, sinal que o trabalho estava começando por ali.

Parando em uma daquelas barracas que vende bebidas, principalmente alcoólicas, nota-se que uma senhora de idade vem fazer o atendimento. É Dona Valdice. De baixa estatura e sorriso aberto, Valdice Vasconcelos está no ramo há 25 anos. “Trabalho com isso desde antes de vocês nascerem”, brincou.

Ela já é aposentada, tem 65 anos e ainda trabalha como ambulante porque gosta da movimentação noturna, além de trazer uma renda extra para ajudar nas contas de casa. “Aqui a gente conhece pessoas novas, faz amizade, clientela. Quando eu tô num show, os clientes já vem na minha barraca. Um pessoal que sempre compra comigo. Eu gosto disso e é um dinheiro extra que ajuda a comprar o que eu quero e comer o que eu gosto”, explicou Valdice.

 

Apesar do trabalho de ambulante ser uma fonte de renda para muitas pessoas que trabalham na informalidade, há também desafios significativos na profissão. No caso deste evento, organizado pela Prefeitura Municipal de Aracaju, apenas podem vender suas mercadorias os ambulantes que foram sorteados e que possuem autorização para participar do evento podem vender suas mercadorias no local da festa. 

 

“Entrei aqui por sorteio. Até o local onde eu estou foi sorteado. Antigamente, nesses shows, a gente não tinha sorteio. É muito ruim. São várias pessoas para concorrer a poucas vagas. Quando eu não consigo ser sorteada, venho da mesma forma, mas fico na porta”, desabafou Valdice.

 

Enquanto Valdice conversava com a gente, os fiscais da Emsurb chegaram a sua barraca para verificar sua credencial e alguns dos seus produtos. “Eles sempre estão por perto”, comentou.

Antes de se aposentar, Valdice trabalhava no Hospital de Urgência de Sergipe (Huse). Foto: Lívyan Holanda

A Emsurb é uma empresa pública que concede aos trabalhadores ambulantes a permissão de uso do espaço público. Cabe a ela também a fiscalização de eventos para manter o número de comerciantes sorteados e a proibição de vendas de produtos em recipientes de vidro. Porém, não existe qualquer vínculo trabalhista entre a empresa e os permissionários.  

 

Para que os ambulantes possam vender nesses eventos, é realizado um sorteio de forma eletrônica e os inscritos podem acompanhar a leitura dos números. Porém, os ambulantes que desejam atuar na profissão em locais públicos no dia a dia precisam obter uma autorização da Emsurb.

 

“O interessado em obter autorização para uso do espaço público deverá abrir uma solicitação, através do setor de Protocolo, localizado na portaria do Parque da Sementeira, ou pela plataforma AjuInteligente. O documento deve indicar o local com fotos, qual atividade pretende explorar, o tipo de equipamento (móvel ou fixo), assim como todos os documentos pessoais", pontuou Sayonara Hygia, assessora de comunicação da empresa.

 

Durante o evento, nossa equipe também conversou com Osvaldo Conceição, senhor que estava em seu carrinho de lanches. Osvaldo tem 65 anos e trabalha como ambulante há mais de 30 anos percorrendo várias cidades do estado. "Eu rodo todo o estado de Sergipe com meu carrinho de lanches. Trabalho sempre nas festas, mas agora estou trabalhando mais nos interiores, onde todo mundo me conhece: Porto da Folha, Poço Redondo, Itabaiana, Lagarto, em todas essas cidades eu trabalho”, contou o vendedor. 

 

Mas nem sempre tem festas no estado. Enquanto a próxima festa não acontece, o vendedor explica que, nos períodos sem eventos, se mantém trabalhando vendendo pastéis próximo a uma praça localizada no bairro Siqueira Campos. Foi essa atividade que serviu de sustento para o senhor Osvaldo durante a pandemia. “Ainda bem que eu tinha aquele ponto no Siqueira. Na pandemia tirava uns quarenta ou oitenta conto todo dia com meu carrinho de pastel”,  comentou Osvaldo.

 

Quando questionado sobre sua contribuição ao INSS, Osvaldo comenta que chegou a contribuir durante um tempo. “Paguei, mas deixei de pagar por vaidade. Foi burrice. Quando a gente é jovem, esquecemos da realidade. Não estava preocupado com isso”, desabafou Osvaldo.

 

Durante a nossa conversa Osvaldo relatou que a maioria dos seus colegas de profissão morreram e que ele está cansado da forma que está trabalhando ultimamente. “Trabalho muitas horas por dia. Quando tem shows no interior, eu fico duas, três noites sem dormir. Não aguento mais não. Já estou velho e cansado” desabafou.

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Atualmente Osvaldo já iniciou seu processo de aposentadoria e está aguardando sua finalização. Foto: Lívyan Holanda

FINAL DE SEMANA

 

Se a rotina desses trabalhadores é diariamente cansativa durante a semana, no final de semana o trabalho continua, mas com a quantidade maior de possíveis clientes que saem para curtir a folga do trabalho. A nossa equipe de reportagem acompanhou o trabalho dos ambulantes nesse período. Porém, o final de semana começou com previsão de chuva na capital e no sábado choveu bastante. Mas, no domingo o dia raiou e deu praia, então foi possível fazer a apuração.

 

Debaixo do sol das 10 horas da manhã, avistamos uma jovem de camisa longa e boné vendendo água mineral na Orla de Atalaia, era Janaina (nome alterado para proteger a identidade da fonte). A menina de 17 anos começou a trabalhar para juntar dinheiro para a faculdade. "Comecei a trabalhar com 12 anos, na companhia dos meus pais. Como já vou completar 18 em novembro, comecei a vir sozinha", explicou.

 

Para escapar do sol quente, ela se protege da maneira que consegue. Antes de sair de casa, passa protetor, veste sua camisa de manga comprida e põe seu boné na cabeça. Sua família tem um longo histórico de câncer. 

 

"Não cheguei a conhecer minha avó. Ela morreu de câncer. Na minha família sempre tem casos dessa doença. Minha mãe sempre diz para eu ter cuidado. Por isso, sempre tô cuidando da minha saúde. Somos mais frágeis à doença", comentou a menina.

 

Janaina só trabalha durante os finais de semana para não prejudicar seus estudos. De segunda a sexta, a jovem, que atualmente está no segundo ano do ensino médio, estuda em período integral. Com uma rotina à primeira vista cansativa, Janaína explica que não é muito difícil conciliar os estudos e seu atual trabalho.

 

"Eu acho minha rotina tranquila. Agora com o Novo Ensino Médio, tenho tempo para fazer as atividades. Quando chega o sábado e o domingo, eu tô tranquila. Trabalho por vontade própria. Nunca fui obrigada, de jeito nenhum. Meus pais nunca deixaram faltar nada. Vim por vontade própria para poder ter minhas coisas. Não gostava de sempre tá pedindo a eles. Como sonho em cursar direito, tenho que começar de agora. Já tô pesquisando os materiais que preciso comprar e olhando alguns livros. Minha mãe sempre apoiou minha decisão", contou Janaína.

 

Em nossa despedida, relembramos que no dia anterior havia chovido bastante na cidade e questionamos se nesses dias mais chuvosos a garota comparece à praia para vender seus produtos, uma vez que ela se desloca a pé, desde o bairro Aeroporto. "Eu não vim ontem. Não adianta nem vir nesses dias com chuva. Quando chove praticamente não tem ninguém aqui. Esses dias impactam bastante nas vendas", desabafou a garota.

 

Os dias de chuva, de fato, são um grande empecilho para os trabalhadores ambulantes que não têm à disposição os materiais necessários para vender com segurança. Além disso, os números de clientes diminuem consideravelmente, especialmente em capitais onde as praias e atrativos tropicais são o foco dos turistas.

 

Em dias chuvosos não há movimentação, mas em dias ensolarados o mar de pessoas se mistura com o mar da praia, revelando oportunidades de vendas e uma renda maior para os vendedores ambulantes.

 

Continuamos a andar pelo calçadão da Orla da Atalaia, na capital sergipana, e começamos a conversar com Maria Silva Santos, de 67 anos. Maria já é aposentada, se aposentou como dona de casa, mas resolveu voltar a trabalhar como ambulante para fazer companhia ao seu marido.

 

“Meu esposo trabalhava numa firma. Mas, quando ele começou a ter problemas de audição, não conseguiu continuar na empresa. Ele ficou sem saber o que fazer, até que surgiu a ideia de vender alguma coisa. Começou a vender óculos, depois vieram os chapéus, e assim foi indo. Até que um dia ele me perguntou se eu queria ajudá-lo, claro que eu disse sim. Ele nem acreditou. Agora estou aqui há 4 anos.”, relembrou Maria.

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O casal trabalha como ambulantes apenas aos finais de semana. Foto: Lívyan Holanda

O casal vende artigos de praia. Entre chapéus, brinquedos e bolas, questionamos sobre a saúde do casal, mas como Raimundo, marido de Maria, estava tímido, apenas sua esposa respondeu. “Minha saúde está ótima, faço exames e exercício físico regularmente. Como tem casos de diabete na família, procuro me manter sempre saudável”, explicou Maria.

 

O tempo foi passando e fomos andando até a areia. Avistamos uma moça vendendo algodão-doce. O colorido dos pacotes de algodões formavam um belo arco-íris nas mãos da jovem. Nos aproximamos e iniciamos uma conversa sobre o seu trabalho. A moça era Eslânia Rodrigues, de 32 anos.

Nany chega na Orla às 10h e só vai para casa após vender o último algodão doce. Foto: Karla Mota

Nany, como prefere ser chamada, não tem descanso, trabalha de domingo a domingo. Durante a semana, ela faz faxinas como diarista e vende algodão-doce aos finais de semana na Orla de Atalaia. “Não descanso muito não. A saúde tá mais ou menos. Queria ter um tempo pra descansar, mas só vou ter isso quando eu conseguir um emprego fixo”, explicou.

 

Antes de se tornar ambulante, Nany trabalhava na portaria de um condomínio com carteira assinada, mas desentendimentos com o novo contratado do edifício fez com que ela saísse do antigo emprego. “Eu saí e comprei uma máquina de algodão pra continuar trabalhando” contou. 

 

Além do cansaço, Nany ainda enfrenta outro problema: o assédio. Assim como muitas mulheres que trabalham como ambulantes, ela não conta com qualquer tipo de proteção social ou trabalhista que a proteja de casos de violência. Infelizmente, essa situação de vulnerabilidade também a torna alvo frequente de assédio.

“Já sofri assédio, vários, na verdade, são coisas que acontecem, né? Hoje em dia acontece em quase todos os lugares, mas eu vou relevando. Tem  homens que perguntam se eu sou casada. Perguntam sobre meu marido, se ele não me acompanha, se ele tem ciúmes. 

Outros pedem meu número, pedem pra tomar uma cerveja, às vezes ficam até me acompanhando. Aí eu vou me saindo, digo que não tenho telefone, falo também que tenho 3 filhos, que sou casada há muito tempo. Tem que saber sair, ter estratégias, se não eles não saem de perto”, relata Nany.

O assédio não apenas causa desconforto e medo nas vítimas, mas também afeta diretamente seu trabalho e sua renda. Porém, Nany tenta não se abater com essa dura realidade.

“Essas são coisas que a gente passa, mas a gente tem que saber lidar com elas. Se eu ficar com medo e não quiser sair mais pra vender, pra trabalhar, é pior. A vida é um risco e nós temos que arriscar pra ter alguma coisa na vida, né isso?”, desabafa Nany.

RISCOS À SAÚDE

Em 28 de abril, apesar de ser comemorado o Dia mundial da segurança e saúde do trabalhador, os profissionais ambulantes não têm políticas públicas específicas para protegê-los. É válido lembrar também que no dia 01 de maio é comemorado o dia do trabalhador, embora existam datas comemorativas, elas nos fazem refletir e questionar sobre a falta de dados e de suporte governamental, além do esgotamento físico e mental que esses profissionais estão expostos.

 

Além das pessoas que foram entrevistadas, nós tentamos nos comunicar com muitos outros ambulantes que, pelo cansaço, preferiram não nos dar uma entrevista ou uma palavrinha. Isso nos fez refletir sobre como essa rotina é desgastante e como ela afeta a vida pessoal desses profissionais. Maria de Jesus, que trabalha no centro da cidade de Aracaju, por exemplo, diz que não tem mais vontade de sair de casa. Daniel Lucas, ambulante da rua Santa Rosa, também no centro de Aracaju, também afirma que o tempo é curto e o corpo só pede descanso.

 

Esse desgaste é muito frequente nas pessoas que possuem um ritmo maior de trabalho e menor de descanso e lazer. O equilíbrio é difícil de conseguir, especialmente, quando o seu trabalho e salário dependem do próprio indivíduo. Há sempre aquele sentimento de “eu posso trabalhar um pouco mais para ganhar mais dinheiro”, mas os riscos para a saúde são reais e sérios.

 

Longas horas de trabalho é sinônimo de muito tempo em pé. De acordo com a fisioterapeuta Priscila Calmon, essa rotina pode prejudicar as articulações, como, por exemplo, a coluna ou joelho, principalmente das pessoas que não tem a seu dispor um calçado adequado. “Com o tempo, o próprio peso da pessoa gera uma pressão nessas áreas, causando dor crônica e até algum problema musculoesquelético”, explica a fisioterapeuta.

 

Ainda conforme com Priscila, pessoas que além de realizar movimentos repetitivos, carregam e levantam muito peso diariamente, podem desenvolver doenças relacionadas ao exercício de sua profissão.

 

“Geralmente surgem problemas musculoesqueléticos, ou seja, patologias ligadas a músculos ou ossos do nosso corpo (envolvendo também todo o tecido mole). Algumas das doenças mais recorrentes são: problemas vertebrais por sobrecarga ou desgaste (espondilose, espondilite), desgaste das articulações de joelhos, ombros e tornozelos, além de dores crônicas, tendinites, entre outras”, explica. 

 

Para melhorar a qualidade de vida, a fisioterapeuta orienta que as pessoas manipulem os pesos corretamente, com orientação de um profissional habilitado. Também não é indicado pegarem cargas excessivamente pesadas e realizar movimentos muito repetitivos, sempre ter tempo para descansar e realizarem algum trabalho laboral como alongamento, no entanto, essas atividades fazem parte da jornada de trabalho dessas pessoas e não podem ser tão facilmente excluídas de seu dia a dia.

 

O mesmo serve para quem trabalha na praia, já que eles estão mais propensos que outros a sofrerem desestabilização por conta da areia, terreno que pode acentuar os prejuízos, além de aumentar as chances de acidentes ao carregar peso.

 

Como foi apresentado nesta reportagem, é importante percebermos que os ambulantes realizam seu trabalho em diferentes ambientes. Dessa forma, cada eixo de atuação irá demandar diferentes serviços de saúde. Alguns trabalhadores têm mais contato com o sol, outros têm mais contato com materiais perfurocortantes (materiais que perfuram e cortam ao mesmo tempo) e por isso necessitam de uma atenção diferente. 

 

Ao discorrer dessas histórias e informações sobre a vida dos ambulantes, nos deparamos com uma realidade de descaso com a profissão, com trabalhadores informais em geral também. Para essas pessoas, poucos estudos e levantamentos governamentais são feitos, e os poucos que têm não possuem exatidão em seus números. No entanto, encontramos a Cartilha do Trabalhador Informal, uma coleção de estratégias de atenção à saúde do trabalhador que pode ser de grande ajuda para as pessoas que gostariam de compreender o assunto e saber como exercer a profissão com mais segurança.

 

Além dos ambulantes, enfermeiros e técnicos de enfermagem também encontram adversidades em suas profissões, confira o documentário “Na enfermaria” para saber mais.

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