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Para curar de todo o mal

O indivíduo dilacerado busca na fé e na tradição religiosa refúgio e cura para suas aflições  

Por Valter Davi, Larissa nascimento e Emily Prata

A tradição conta que, quando ficou rapaz, Obaluaê resolveu correr o mundo para ganhar a vida. Partiu vestido com simplicidade e começou a procurar trabalho, mas nada conseguiu. Começou a passar fome e mesmo assim não recebeu ajuda. Saindo da cidade, embrenhou-se na mata, onde se alimentou de ervas e caça, tendo por companhia um cão. Ficou muito doente e, por fim, quando achava que ia morrer, Olorun – criador do universo e dos orixás – curou as feridas que cobriam seu corpo. Agradecido, Obaluaê começou viajar pelas aldeias para curar os enfermos e vencer as epidemias que castigaram todos que lhe negaram auxílio e abrigo.

 

Certo dia, numa de suas jornadas, chegou até uma aldeia e pediu água e um pouco de comida para prosseguir a viagem. Como todos conheciam sua fama e suas ligações com as doenças contagiosas, foi barrado antes mesmo de penetrar na aldeia. O dirigente afirmou que não o queriam lá.

 

Obaluaê Xapanã foi sentar-se no alto de um morro próximo. A manhã mal havia começado e ele ficou sentado, envolto em sua palha de costa, observando a subida do Sol. As horas passaram e ao meio-dia, exatamente, o sol escaldante,  tornou-se insuportável. A água ficou quente, o alimento estragou e toda a tribo se contorcia de dor, aflição e agonia. Xapanã a tudo observava, imóvel. 

 

Na aldeia um alvoroço se fez. Uns tinham dores de barriga, outros fortes dores de cabeça, outros arrancavam o sangue da própria pele numa coceira incontrolável. Aos poucos, a morte foi chegando para alguns. Foram três dias de sol quente, pois a noite não chegava e a aldeia viu-se às voltas com doenças, loucura, sede, fome e morte.

 

Não aguentando mais, e vendo que Obaluaê continuava no alto do pequeno morro, o dirigente da aldeia foi até ele suplicar perdão, atirando-se aos seus pés: ‘em nome de Olorun, perdoe-nos! Já não suportamos tanto sofrimento! Tente perdoar, por favor!’

 

De súbito, Obaluaê levantou-se, desceu até a aldeia e pisou na terra. Tornou-a fria. Tocou na água, tornou-a fria também. Tocou os alimentos e os tornou novamente comestíveis. Tocou a cabeça de cada um dos aldeões e curou-lhes a doença. Tocou os mortos e os fez voltar a vida em seus corpos. Restaurada a normalidade, ele pediu mais uma vez um pouco de água e alguma comida para prosseguir viagem. Com rapidez, foi-lhe servido o que de melhor havia em toda a aldeia. Deram a ele vinhos de palmeiras, frutas, carne, legumes e cereais.

 

Voltando para os aldeãos, Xapanã deu-lhes uma lição sobre a vida e sobre a saúde: Vivemos num só mundo. Sobre a mesma terra, debaixo do mesmo sol. Somos todos irmãos e devemos ajudar uns aos outros, para que a vida seja mantida. Dar água a quem tem sede, comida a quem tem fome é ajudar a manter a vida. 

 

Voltou-se e partiu. Atrás dele, o povo gritava: Obaluaê, rei e Senhor da terra! Xapanã, Obaluaê! Xapanã, Obaluaê! 


 

ORIXÁ QUEM GUIA

 

O conhecimento do candomblé, transpassado através da oralidade pelo Itan de Obaluaê, exemplifica uma percepção, diferente da habitual, entre doença e saúde. A tradição não só oferece uma divindade que conhece o adoecimento, mas também deixa claro que o adoecimento é o contrário do cuidado. Obaluaê adoece porque não recebe ajuda, mas a aldeia adoece por não ajudar. A saúde é um estado pleno e não individual. Por isso, ajudar uns aos outros é contribuir para a perpetuação de uma vida plena.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ser saudável vai além de não estar doente. A saúde engloba um estado pleno de bem-estar físico, mental e social. O conceito progressista de Saúde propagado pela OMS é novo para a lógica ocidental, mas é antigo no candomblé. Nos terreiros, as categorias de saúde mental, espiritual e física estão intimamente inter-relacionadas no axé, palavra que significa força, poder, energia e tem relação com a experiência adquirida ao longo do tempo.

O axé representa tanto a energia dos orixás quanto a vida, já que tudo o que é vivo tem axé, das mãos de abençoam às palavras que saúdam, passando ainda pelo conhecimento e pela força da natureza. Como atravessa tudo e é atravessado por tudo, o cuidado em saúde é sempre um cuidado pleno e integral, já que o corpo, mente e espírito não são partes isoladas. 

Essa conexão faz com que o sacerdote, além de pai espiritual, seja também cuidador em saúde. Os cuidados incluem o uso de ervas, banhos, dietas e ritos de iniciação. Bem como o culto dos orixás, entidades que representam a energia e a força da natureza. No candomblé, Obaluaê, Ossaim, Iroko e Yemanjá são as principais divindades ligadas ao processo de cura, ainda que os demais membros do panteão contribuam, cada um ao seu modo, para uma vida plena.

“Obaluaê é aquele orixá ao qual se recorre quando uma pessoa está enferma de doenças que não sejam bacteriológicas e virais”, conta o Babalorixá Rodrigo Tavares, do Ilé Àsè Ofáderéwà. O pai de santo explica que, por já conhecer a tristeza e a dor, Obaluaê é um orixá justo, que entende que deve ajudar os filhos que a ele recorrem. Para pedir o cuidado do orixá, os fiéis oferecem o mesmo que Obaluaê comeu para se fortalecer, que é a pipoca ou deburu. “Se ele foi curado, se ele conseguiu reviver através de Yemanjá, com uma pipoca sem sal, ofertando pipoca a ele, em nome da pessoa, ele vai querer que essa pessoa também precise de pipoca para reviver. O processo de cura acontece a partir do momento que você pede, é atendido e se cuida”.

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Colhido o milho, é aquecido e se torna alimento e cura. Foto: Arquivo.

Todo cultivo, manutenção, coleta e preparo das plantas é significativo nas religiões de matriz africana. Através das ervas, há o contato com Ossaim, orixá que conhece as ervas e os seus mistérios. “Foi ele que, ancestralmente, disse qual folha curaria determinada doença. É ele que fala qual folha acalmaria determinada cabeça. Então ele, que guarda os segredos da folha, que oficialmente estudou e cuidou das folhas para que hoje a gente pudesse utilizá-las”, explica Rodrigo Tavares. 

Enquanto a raiz dos problemas é tratada com as ervas de Ossaim e as dores e angústias são tratadas com o auxílio de Obaluaê, as doenças bacterianas pedem atenção a Iroko, porque ele é o orixá ancestral, que viu tudo passar e acontecer. “Diante do processo de evolução das espécies, as bactérias também evoluíram e Iroko viu essas bactérias do seu início, até elas se tornarem bactérias super poderosas ou não. Ele vai de encontro com o começo dessa bactéria, para que ele possa curar a fase final dela, já que ele conheceu toda a sua constituição”, continua o Babalorixá. 

No que toca à questão da saúde mental, Rodrigo Tavares explica que primeiro é preciso ter noção de qual é o Orí, ou seja, o orixá pessoal de cada sujeito. O Orí, que em yorubá significa a cabeça, pede equilíbrio e fortalecimento para que o sujeito possa viver bem, com a saúde mental e espiritual em dia. Quando não há o cuidado com o Orí, tendem a existir problemas no âmbito psíquico. 

Nessa questão, além de cuidar do próprio Orí, a orixá a quem se recorre costuma ser Yemanjá, que é a mãe de todo Orí. “Então, a gente recorre a Yemanjá, para que a gente tenha uma melhora na depressão, ansiedade, doenças psiquiátricas, que é tudo aquilo que envolve o nosso mental. Por ela ter moldado o Orí, ela tem conhecimento e livre acesso a essa entidade, que é o equilíbrio na nossa cabeça. É ela que ajuda no cuidado e no enriquecimento dele, para que tenhamos um Orí próspero, um Orí forte, um Orí bom”, explica Rodrigo Tavares

 

 

 

 

REZAS, OLHOS FECHADOS E PÉS NO CHÃO 
 

O candomblé começa o processo de cura com o reencontro ancestral, ou seja, com o reconhecimento das conexões de cada pessoa e segue mantendo esse contato e orientando para transformá-lo em um cuidado contínuo.  “É a mesma coisa quando você tem que tomar um antibiótico. Se você tomar uma vez, não vai resolver, você tem que tomar por um determinada quantidade de dias para poder encontrar a cura. E dentro do candomblé é a mesma coisa. Você tem um encontro ancestral, você começa a cumprir a sua missão. E assim que você começa, deixa para trás todas aquelas cobranças, todas aquelas coisas que te afetavam. Mas esse cuidado tem que ser contínuo, já que uma missão terrena nunca tem fim. O único fim é a morte”, explicita Pai Rodrigo.

 

O processo iniciático é o marco do encontro ancestral e a chave para uma cura permanente. Durante a iniciação, é feita uma conexão diária, a todo instante, para que os elos entre o iniciado e seus ancestrais sejam entrelaçados e nunca mais desfeitos. “Imagine que a iniciação é a UTI do processo de cura. Até você chegar nessa UTI pra poder ter a cura definitiva, há um processo de adoecimento. Existem pessoas que chegam, tomam soro e saem do hospital. Existem pessoas que sofrem alguma coisa na rua, em casa, ou fazendo alguma coisa, e vão direto para a UTI para poder encontrar cura. Tudo depende do caso”, elucida o pai de santo.

 

Ainda que nem todos os casos de cura exijam que o fiel passe pela iniciação e que existam outras razões, além da saúde, para que pessoas se iniciem no candomblé, o babalorixá afirma que a relação entre iniciação e saúde é palpável e evidente. Lidando com a espiritualidade há 14 anos e há um ano diretamente com a própria casa de candomblé, Pai Rodrigo afirma que consegue ver nitidamente a mudança das pessoas com a presença e cuidado contínuo do orixá. Pessoas que chegamdoentes, tristes, abatidas e com alguns meses já apresentam outra fisionomia, outra disposição para lidar com a vida. 

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“Quando você tem fé, você não desiste”. Foto: José Neto

A iniciação é um processo ritualístico que ajuda a intensificar a conexão com o orixá. Nesse processo é preciso ter um recolhimento de 21 dias, onde serão feitas oferendas aos orixás, a raspagem do cabelo, uso de roupas exclusivamente brancas, dormir no eni (palha), não utilizar talher para se alimentar e outros ritos fechados e restritos da religião. “Quando você entrega o seu cabelo, come com a mão e deita em uma esteira, você está entregando tudo aquilo que é de conforto e vaidade para poder se reconectar com o que é real, com o que é palpável, com o que realmente importa”, aponta o babalorixá.

Iniciar-se no candomblé é aceitar começar tudo de novo. Foto: Arquivo

Esse processo contribui para uma saúde plena porque não só resolve problemas, mas principalmente porque ensina a retroagir e a repensar prioridades. “Nós, com processo de evolução, começamos a deixar de dar valor a coisas que realmente importam, como um prato de comida, o ato de dormir ou o ato de respeitar. Dentro do processo iniciático você tem que se reencontrar com isso, para que você possa renascer para a nova vida, como se estivesse recomeçando uma conexão ancestral”, explica o Baba Rodrigo. 


CAMINHOS QUE SE ABREM

A redatora e professora de redação Maria Graziela Correia, 25, teve o seu primeiro contato com o Candomblé aos 16, quando se aproximou da religião em busca de uma cura para a sua mãe, que apresentava desmaios repentinos. Na época, a família procurou ajuda médica, mas os profissionais não conseguiram descobrir o motivo dos desmaios. “Eu conheci um amigo que falava sobre os orixás, e perguntei para ele o que eu poderia fazer. Se podia fazer alguma oferenda que pudesse ajudar a minha mãe. Porque eu estava de fato desesperada. Foi assim que ele me apresentou o Omolú/Obaluaê”, lembra Graziela.
 

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Ser filha de Yemanjá é saber que o que acalma é água salgada. Foto: Arquivo.

Alguns dias após a oferenda, a mãe de Graziela começou a apresentar melhora e os desmaios começaram a cessar. Hoje, ela descobriu que, assim como a filha, também tem ansiedade, mas está fazendo tratamento terapêutico. A solução para o problema da mãe ajudou a consolidar o interesse de Graziela sobre o candomblé. Em 2018, após ingressar no curso de Letras da UFS, ela percebeu que as consequências da ansiedade, que persistia a anos, dificultaram o seu jeito de se expressar e de falar em público. 

Um mês após começar as suas aulas, Graziela conheceu Rodolfo e descobriu que ele frequentava o terreiro Ilé Asé Alaroke Bàbá, no qual em 2021 ela viria a se iniciar para Yemanjá. No terreiro, a consulta aos orixás encaminhou Graziela para alguns procedimentos espirituais. “Fiz um ebó e um bori, tomei um banho de folhas e comecei então a me sentir melhor”. A melhora inicial não foi percebida por ela como um fim, mas como o começo de uma jornada maior. “Eu percebi que muitas coisas foram mudando, eu fui começando a desenvolver, mas não foi fácil. O orixá dá a cura, mas ele dá muito mais caminhos para que essa cura seja efetiva. E até hoje eu consigo ver isso. Eu consigo ver os orixás me dando caminhos para que eu possa curar a minha ansiedade”. 

Não muito distante das demandas vividas por Graziela, Ariadinne Lima, terapeuta capilar, viu na religião uma forma de se reerguer diante de momentos difíceis de depressão e ansiedade, mas nesse caso, iniciando seu processo de cura no acolhimento de um terreiro de Umbanda. “A minha orixá começou a me reerguer e a me tirar do buraco onde eu estava, junto com todas as outras entidades: Caboclo, Preto velho, Exu catiço e Pomba gira. Eles conversaram muito comigo, e me ensinavam como aquilo que eu tinha passado, serviu pra me ensinar muitas coisas. E que eu devia estar chorando por pessoas que valessem a pena”, conta Ariadinne. 

Mas seus caminhos não estavam traçados na umbanda e ela se viu mais uma vez desesperada, sem saber para onde recorrer. Sentia a necessidade de cuidar de sua orixá e então surgiu a oportunidade de jogar os búzios no Ilé Àsè Ofáderéwà, com Pai Rodrigo de Oxóssi, seu atual pai de santo. “Ele jogou pra mim e me disse que eu era de Onira. Nos búzios saiu exatamente tudo o que estava acontecendo na minha vida naquele momento e foi aí que eu me entreguei totalmente ao candomblé”, continua a terapeuta capilar. 

Foi dentro do Ilé que Ariadinne aprendeu a ser paciente, a como lidar melhor com a vida e aprendeu também que nunca está sozinha, pois tem seu orixá. Mesmo não sendo uma pessoa ‘rodante’, que recebe o orixá no corpo, comenta que já esteve uma situação de estar muito triste e uma filha de santo rodar a orixá dela para  acalentar o seu choro. “Então o candomblé traz isso pra minha vida. Amor.  Eu entrei por amor e me iniciei por amor, não tinha cobrança nenhuma de Onira na minha vida”. 

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“Não imagino a minha vida sem ela. Ser filha de orixá é uma dádiva”. Foto: Arquivo

Já no Alto da Sé, em Olinda, Pernambuco, em meio a loja de artesanatos, Gilblênio Saadh produz acessórios e decorações manualmente, na loja da escola de samba G.R.E.S. Preto Velho. O artesão é politeísta, cultua o Candomblé, a Umbanda e a Jurema Sagrada, este último é uma religião de matriz indígena do Nordeste brasileiro.

 

A sua relação com as religiões começou há 12 anos, no entanto, em 2020, Gilblênio precisou recorrer aos processos de cura dos Orixás e dos Pretos Velhos. Os Pretos Velhos são entidades advindas da Umbanda, idosos africanos que há muito tempo foram escravizados e morreram no tronco ou de velhice. Eles representam, além do amor, a sabedoria e o cuidado.

 

Por causa de uma hérnia de disco na lombar, Gilblênio padeceu. Ficou 97 dias sem andar, sentar ou até mesmo ficar em pé. Foi através das ervas e da fumaça sagrada da Jurema, que é uma forma de entrar em contato com o divino, que Gilblênio conseguiu se curar. “Eu sou a prova viva de que o processo da cura existe, e das pessoas que chegam no barracão em busca desse contato. As pessoas saem de lá benzidas, com seus galhinhos de arruda ou de qualquer outra erva para fazer os seus banhos. Então esse contato com a cura é maravilhoso”, contou o artesão sobre suas experiências vividas e assistidas.

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“Os pretos velhos de alguma forma interviram nessa minha enfermidade, e me trouxeram a cura também”. Foto: Valter Davi

NEM TUDO É SOBRE DOENÇA, MAS TUDO É SOBRE CUIDADO


 

A religiosidade e saúde se relacionam, pois a crença e a espiritualidade são formas de amenizar dores, feridas e fraquezas. A doutora em psicologia e pesquisadora em ciências da religião, Jeane Alves, explica o processo de espiritualidade a partir não só das suas pesquisas, em volta das benzedeiras, mas também baseada em suas experiências individuais com diversas religiões. “Ultimamente temos observado que as pessoas têm buscado muito a espiritualidade, falo em espiritualidade porque ela independe de religião, existem muitas espiritualidades sem religião. Muitas pesquisas recentes comprovam que as pessoas têm melhorado sua qualidade de vida quando vivenciam uma espiritualidade. Uma vivência espiritual contribui para a saúde mental do indivíduo”. 

 

Principalmente quando se trata de saúde mental, o sagrado se torna um alicerce para o momento de dificuldade. Depois de muito tempo e debates, profissionais de saúde mental passaram a entender que a religiosidade ajuda a lidar com questões psíquicas e psicológicas. A mudança de perspectiva também contribui para surgirem pesquisas sobre a espiritualidade e saúde, em seus diversos vieses. 

 

A Yalorixá Rita de Cássia, do Ilé Yátassitaôô Ifá Enibalé, explica que antes de realizar qualquer trabalho pede que as pessoas consultem primeiro um médico e façam exames. “Só aí olhamos e vemos se é realmente algum problema espiritual”, comenta mãe Rita, que também seguiu carreira profissional na enfermagem. A partir desse trabalho, ela descobriu a importância do cuidado humano, principalmente para os que estão em situações mais críticas. 

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A ancestralidade cultua a vida e todas as forças existentes. Foto: Larissa Nascimento

O apoio é uma das maiores razões para as pessoas se voltarem ao sagrado nos momentos de dor, mas não se deve descartar os tratamentos convencionais e negar a ciência. “Nem toda doença é de benzedeira, tem doença de médico e doença de benzedeira”, explica mãe Rita. Acrescenta ainda que é importante saber diferenciar aquilo que pode ser tratado através do espiritual e aquilo que deve ser levado ao médico. 

 

A religiosidade é uma fonte de apoio, mas não proporciona cura total. Nesse sentido, o conhecimento dos profissionais da saúde em relação ao ambiente social e cultural em que realiza sua prática é importante, pois a religião pode servir como grande forma de incentivar o paciente no tratamento e como forma de apoio psicológico, emocional e motivacional. 

 

Para Mãe Rita, assim como pode oferecer suporte diante de situações graves, a falta de fé pode agravar problemas simples. “A cura vem junto com fé, se você não tem fé até um tratamento que você está fazendo não dá certo, se você entra em depressão sua imunidade cai e você acaba não conseguindo, porque sua fé acabou falhando”, explica a Yalorixá.

 

Estudos têm revelado, ainda, que atividades religiosas, como envolvimento em cultos ou atividades voluntárias, estão associadas a melhor saúde física, particularmente quando ocorrem no ambiente da comunidade. “A religião serve como um sustentáculo, um porto seguro, o alicerce para o indivíduo quando é preciso. Como forma de elemento catártico e esperançoso, a religião alimenta a esperança do indivíduo, ela não é terapêutica, mas fornece ao indivíduo essa possibilidade de expressão e liberdade”, explica Jeane. 


SEM FOLHA NÃO TEM ORIXÁ 

 

As práticas religiosas ligadas à cura tendem a se relacionar com ervas e alimentos, através de chás, banhos e rezas ou no consumo de comidas que ajudam a curar. Nas religiões de matriz africana, as plantas apresentam valor inestimável entre suas lideranças, zeladores e praticantes, sendo extremamente valorizadas e respeitadas, principalmente naquilo que envolve a relação entre o corpo e a alma. 

 

No centro da cidade de Aracaju, nos Mercados Centrais, se encontra a banca de ervas mais popular da cidade, Silvaneide Soares, mais conhecida como Galega das Ervas, atua no ramo há 33 anos. Ela comercializa ervas, imagens e diversos outros artigos religiosos e conta que não é procurada por membros de religiões específicas, todo tipo de pessoa frequenta sua banca ao longo do dia. “Eu ensino tudo certinho, como funcionam os banhos ou os chás, para que servem cada uma das plantas. Muitos médicos indicam ervas também, para quem não tem condições de comprar os remédios por serem muito caros, então eles indicam as ervas e o pessoal vem aqui comprar”, descreve Silvaneide.

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Orixá é natureza. Candomblé é energia viva em movimento.  Foto: Larissa Nascimento

O Babalorixá Rodrigo Tavares afirma que, no candomblé, os alimentos selam o processo de cura e limpeza, estabelecendo a relação entre os orixás e a terra. Os orixás possuem relações particulares com alimentos que se vinculam a suas jornadas. O pai de santo explica que, no processo de limpeza energética, os alimentos atuam como um imã retirando do corpo do indivíduo as energias que impedem que a pessoa seja feliz. “Imagine aquela pessoa que é depressiva, quando a gente passa os alimentos votivos de Yemanjá no corpo da pessoa, é como se fosse um imã que puxa essa a depressão de volta para a terra. Porque depois que a gente passa essa comida, que cai no chão, ela está voltando pra terra”, explica Rodrigo. 

 

Mas o ilê leva sua espiritualidade e capacidade de cura para além do poder das ervas, passes e rezas. A cura também é executada através das ações de bem-estar social dentro das comunidades em que atuam. O Ilé Yátassitaôô Ifá Enibalé, realiza trabalhos através da Associação Luz do Oriente, que desenvolve trabalhos com a comunidade em que estão alocados e de outros bairros que os procurem, realizando festas e celebrações em datas comemorativas. 

 

Durante o dia da mulher, por exemplo, a comemoração envolve uma parceria com uma clínica volante, para o atendimento de  mulheres da comunidade ao longo do dia. Eles também distribuem sopa para pessoas em situação de rua. O pai José, curandeiro do Ilé Yátassitaôô Ifá Enibalé, contou a necessidade de criar a Associação para realizar esses trabalhos, que vão além da religiosidade, tanto deles que realizam as ações, quanto daqueles que são beneficiados. 

 

“A associação tem mais ou menos 15 anos e desenvolve alguns trabalhos com pessoas da nossa comunidade e alguns outros bairros. Nós já realizávamos alguns trabalhos aqui no Ilé, as pessoas já vinham nos procurar para pedir alimento, aplicar algum tipo de medicação, e assim foi crescendo. Não realizamos ações diárias, por ser uma associação sem fins lucrativos, mas temos algumas parcerias que pedimos e nos ajudam a realizar esses trabalhos, dentro e fora da nossa comunidade. Realizamos também palestras e eventos como o Natal solidário, onde proporcionamos uma tarde de lazer aqui no nosso centro para a comunidade”, explica Pai José.


 

PARA CURAR DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

 

Como forma de tentar curar uma ferida infeccionada há séculos, a Caminhada Para Oxalá, em Aracaju, mostra para a sociedade que ainda há resistência. Ao falar sobre adoecimento dos povos de matriz africana, é essencial discutir a  intolerância religiosa. No ato de convidar fiéis de diferentes vertentes para apoiar essa luta, a caminhada se torna um momento de acolhimento; é a união de forças em prol de um bem-estar social. 

 

Aquela tarde foi um encontro tanto religioso, quanto político e social. Para além de ter uma importância para a luta contra a intolerância religiosa, a Caminhada para Oxalá possui pautas anti-racistas e anti-homofóbicas que são bases da história do movimento. A pauta anti-racista envolve a defesa de religiões afro-brasileiras, sendo as mais conhecidas o Candomblé e a Umbanda. Infelizmente é comum que as pessoas dessas religiões sofram racismo religioso carregado de intolerância, visto que as origens, o passado e a história dessas religiões carregam marcas que precisam ser tratadas até hoje.

A comunidade sentiu a energia e compartilhou dos mesmos passos e alegria. Foto: Larissa Nascimento e Valter Davi

A organizadora da caminhada e também advogada, Isabella Sandes, estava com os pés no chão, ao lado do trio elétrico, cantando suas canções, sentindo seu corpo ser inundado pela sua fé e toda a sua força reunida para resistir. “Essa caminhada é para trazer todas as religiões, todas as casas de matriz africana, mas também outras religiões para poder comungar desse amor, desse respeito e desse direito de laicidade. Estaremos todos juntos e respeitando”, falou a coordenadora das religiões de matriz africana da comissão de liberdade religiosa da OAB Sergipe.

 

Durante toda a caminhada, o Pai de Santo Cristiano, que é sacerdote do Abassá Axé Ilê Pilão de Oxaguian, foi colhendo e doando abraços, sorrisos, afetos e bençãos. Ao final do percurso, mais afastado do povo que tomava os pés do trio, o Pai assistia a todos com um sorriso no rosto, mas a sua fala é de quem anseia mudanças sociais. “A sociedade ocidental tem muito a aprender com as religiões de matriz africana, que vai para além de uma questão religiosa. Ela traz um princípio filosófico que é de vida mesmo”, ressaltou o Pai Cristiano sobre os ensinamentos que a caminhada leva para todos e os objetivos das lutas diárias para combater um mal que adoece a muitos.

 

O adoecimento gerado em uma sociedade derivada de colonização, exploração e genocídio de muitos povos se torna sintoma tanto na intolerância religiosa quanto no racismo contra os Povos de Terreiro, que precisam resistir a ataques verbais e físicos diariamente. O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, 21 de janeiro, foi criado a partir de um caso de racismo religioso. A Iyalorixá Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda, faleceu após sucessivos ataques de agressão que derivaram de uma publicação da Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus. 

 

A publicação estampou na capa uma foto da Mãe Gilda com uma oferenda aos seus pés e uma tarja preta nos olhos com o título “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida de clientes”. Após a sua morte, o monumento criado em sua homenagem e posto na cidade em que fundou o seu terreiro, Itapuã, é alvo de ataques de pessoas de outras religiões. O último vandalismo registrado foi em 2020, em que o agressor destacou que fez o ato “a mando de Deus”.

 

Os ataques de intolerância religiosa variam de agressões por violência verbal, constrangimento público, bullying em ambiente escolar, xingamentos, pedradas, demissões do trabalho e até seleção discriminatória para uma entrevista de emprego. Essas violências são acometidas a todas as religiões, mas em proporções distintas. Os dados de denúncias do Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos, mostram que as denúncias feitas por evangélicos vem crescendo. No ano de 2020 o número de casos de intolerância religiosa contra evangélicos era de 63, já em 2021 esse número saltou para 186.

Segundo o relatório “Respeite o meu Terreiro”, elaborado pela Ilê Omolu Oxum e Rede Nacional de Religiões afro-brasileiras e Saúde em 2022, a maioria dos casos de violência contra os fiéis são praticadas por evangélicos, católicos, servidores públicos e facções criminosas, além de terem espaço nas redes sociais. O escritor e filósofo Frantz Fanon levanta e explica o conceito de racismo simbólico, referente a depreciação dos saberes e das culturas que os povos pretos constroem e passam de geração em geração, ao longo dos anos.

 

O desrespeito às culturas e religiões é uma tentativa de mitigar saberes de cura, espiritualidade e fé. Os ensinamentos sobre saúde e cuidado vão além da religião, são tradições que chegam até a ciência. Desde uma erva que é colhida até um prato de comida que é servido, as religiões de matriz africana conseguem nos ensinar sobre cuidado. O corpo, o ser e o espírito formam um elo de resistência, capaz de formar uma barreira de proteção que impeça todo o mal de atravessar. 

Para saber mais sobre o processo de iniciação, recolhimento e cura, assista o documentário “Cria de Oxóssi”. 


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